As constantes desilusões dos países sonhados por imigrantes ilustram a história de Ousmane. Senegalês, muçulmano e poliglota, largou a faculdade e seguiu para a sua idealizada Buenos Aires
A única dívida é com o povo. A mensagem, estampada em um dos diversos cartazes presentes naquela tarde gelada, resumia o motivo pelo qual a população estava protestando. Insatisfeitos com o atual governo da Argentina, o povo escolheu o dia da independência do país, 9 de julho, para manifestar contra Mauricio Macri e suas medidas como presidente. Fechando as principais avenidas de Buenos Aires, os portenhos marcharam rumo à Plaza de Mayo. No meio de tanta movimentação, foi possível avistar um rosto acuado, com frio, no canto da calçada.
Argentinos vão para as ruas protestar contra o atual governo.
Ousmane Diagne, 30 anos, aproveita o maior fluxo de pessoas para estender um plástico sobre o chão e expor as suas mercadorias. A esperança é vender tudo, mas, torna-se praticamente invisível num plano tão baixo. Acostumado com um frio de, no máximo, 15 graus, o senegalês relata que, na verdade, a temperatura é o menor dos seus problemas. Há cinco anos viajou, junto com o seu irmão, por 14 horas da África rumo à Buenos Aires em busca de emprego. “Trabalhamos na rua porque aqui não encontramos oportunidades de trabalho. Então, o único que conseguimos fazer é sair para a rua e vender. Assim, tentamos conseguir um pouco de dinheiro”, conta Ousmane. O vendedor continua relatando que a vida de imigrante na capital argentina é muito difícil. Apesar de viver há anos na cidade, ultimamente, está cada vez pior. Para ele, no antigo governo da ex-presidente Cristina Kirchner, a situação era mais favorável. Acredita que agora está mais complicado pelo país não ter mais tanto dinheiro e percebe o reflexo da economia atual da Argentina afetando diretamente o seu trabalho. As características dos últimos tempos que acabaram ilustrando o governo Macri são: a inflação acelerada, o salto de 30% na taxa de câmbio em pouco mais de cinco meses e a seca histórica.
Preconceito enraizado
Morador de uma favela de Buenos Aires, compartilha moradia com primos e outros imigrantes de diversos países, tais como Bolívia, Peru, Nigéria e Gana. Ao final de cada dia, junta o dinheiro que conseguiu arrecadar com o de seu irmão e começam as divisões. Uma parte para o aluguel, outra para refeições e, se sobrar, enviam para a sua família. Motivo pelo qual vieram em busca do sonho argentino: poder ajudar os seus familiares que ficaram na África. “Eu saí de lá porque não há tanta oportunidade de trabalho igual aqui. A ideia é conseguir juntar mais dinheiro e voltar a viver lá. A minha vida não é aqui”. A discriminação é outro fator muito forte e presente durante todos os seus anos morando na capital. Muitos argentinos lhe insultam com palavras racistas e xenofóbicas. “Me dizem que sou negro, escravo e seguem com outros xingamentos depois disso. Eu gosto de ser negro, por que fazem isso? Eu sou uma pessoa como todas as outras. Me discriminam também por ser pobre. Eu tento melhorar, seguir adiante e ter uma vida mais digna, mas não é fácil. Em qualquer lugar do mundo terá discriminação. Não posso ficar triste com isso, eu sou o que sou. Eu não posso mudar e a minha cor também não pode. E, afinal, não quero mudar”.
A sua aposta é que seja ignorância, conta que as pessoas acreditam que na África só há selva. Quando, na realidade, é uma cidade como Buenos Aires. Ainda que sofra preconceito, crê, um dia, que todos terão a cabeça mais aberta para saber entender e conhecer o que se passa nos outros países. Sua rotina de trabalho é de segunda a segunda e começa às 8h seguindo até 18h. Ousmane troca de rua conforme o movimento, por esse motivo, estava na Avenida 9 de Julio no dia da manifestação. E, se chover, os cachecóis dão lugares aos guarda-chuvas. As chances de vendas não podem parar. Em Buenos Aires, é proibido vender na rua. Entretanto, o senegalês conta que, ao mesmo tempo, não possui outro local para trabalhar. A justificativa que a polícia lhe dá é que está incomodando as pessoas e dificultando a locomoção nas calçadas. Consequentemente, muitas vezes já confiscaram os seus produtos. “Já entraram na minha casa e levaram toda a minha mercadoria e todo o meu dinheiro, não deixaram um centavo. Falaram que estávamos vendendo algo ilegal. Não vejo como possa ser ilegal, é algo que compramos e revendemos. É claro que eu não gosto de vender na rua, mas é a minha única maneira de sobreviver. Independentemente de ser na rua, é um trabalho como qualquer outro. Só estou fazendo algo para ter dinheiro e poder viver como gente”.
Salas de aula na favela
No Senegal, teve que largar a faculdade de filosofia e literatura em 2008 quando a sua mãe faleceu. Sonha em ser professor para poder ajudar as pessoas, prática que já deu início em seu bairro onde ensina aos novos imigrantes espanhol. Além do idioma local de Senegal, wolof, é fluente, também, em inglês e francês. Aprendeu sozinho em suas quartas-feiras, data em que dedicava todo o seu dia para estudar na biblioteca. Como um compromisso semanal, devorava um livro após o outro. “Na minha antiga casa eu tenho muitos livros. Eu sou muito curioso e gosto de aprender e saber de tudo. Os professores as vezes até me perguntavam coisas durante as aulas. Eu amo literatura e tudo que envolva letras”. Seu desejo é continuar com os estudos, mas, como não possui documentação em Buenos Aires, segue só sonhando. “Nós africanos, que chegamos depois de 2014, não conseguimos mais documentos. E, sem isso, não dá para fazer empréstimos, trabalhar e estudar. Não há oportunidades. Estudar é o único que me falta para ser um profissional”, completa Ousmane.
Muçulmano, o vendedor é muito religioso e reza cinco vezes ao dia. Pede à Deus força para lutar e conseguir sair para trabalhar e agradece pelo seu conhecimento e por ter onde dormir. O seu maior sonho é conseguir juntar dinheiro para comprar uma passagem para ver a sua família, a qual sente saudades há cinco anos. Quando consegue, vai à uma lan house mandar alguma mensagem. Sente falta do seu país, amigos, familiares e da maneira que é tratado em sua cidade, diferente do tratamento que recebe em Buenos Aires. Segundo ele, seu desejo para os próximos anos é ter um emprego e não depender de ninguém, não incomodar ninguém. “Eu quero ajudar as pessoas pobres. Quero sempre tratar de auxiliar quem precisa. Eu não tenho nada mas se alguém me pede uma moeda, eu dou. Se eu tenho, por qual razão não ajudar? Tem gente em situação pior que a minha”, conclui.
Ousmane compra o tecido e os seus colegas bolivianos e peruanos realizam a costura. Funciona como uma rede colaborativa. No verão, ele vai para a costa vender bijuterias e óculos de sol.
Quando a União Europeia foi criada, houve um fluxo social e econômico necessário e, assim, muitos países africanos, os quais eram colônias, tiveram convites para emigrar. Porém, a partir de diferentes crises desde 2002, iniciaram o fechamento das fronteiras, especialmente, do Sul da Europa. Dessa maneira, a migração africana começou a seguir em direção à América do Sul. O presidente Mauricio Macri decretou, em 2017, uma lei que restringiu a imigração, reforçando o policiamento nas fronteiras e tornando mais rápido e acessível o alcance de informações sobre os antecedentes criminais daqueles que ingressam no país.
Diferente de Ousmane, o seu irmão apostou no Brasil. Ficou quatro anos entre Porto Alegre e Mato Grosso do Sul e, depois de diversas tentativas falhas de conseguir um emprego, voltou para a capital argentina. A partir da análise dos Registros Nacionais de Estrangeiros, o estudo produzido pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) identificou que mais da metade dos imigrantes que chegaram ao país são homens, entre 30 e 34 anos. Semelhança com o perfil dos senegaleses que chegam à Argentina: homens, jovens e de fé muçulmana.
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